sexta-feira, 10 de maio de 2013

Morte e Vida Severina - Parte I

 
Quando estava no ensino médio, tive uma professora de língua portuguesa que nos indicou esse livro, confesso que na época, mesmo gostando de ler, achei a obra um tanto quanto espichada... Mas não precisei de muitas linhas para sentir o quão bela era a história, recordo que fizemos inclusive teatro. Gostaria de compartilhar com vocês, alguns versos:
 
 
 
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES
CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO
O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE
— Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.


CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE
Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.


APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC.

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO

FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA
Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
Os versos foram extraídos do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 171.


#Amanhã, estarei postando um video super lindo de um audiovisual da obra.

:]

3 comentários:

ZULMIRA ROMARIZ disse...

Mila ,somos todos Severinos ,admiro
sua paciência em escrever essa história para nós ,parabéns.
Bom fim de semana ,bjs

Marly disse...

Oi, Mila,

Este livro é importante, para a gente entender melhor o sertanejo nordestino, suas lutas e esperanças, quando emigra, né?
Por causa dele o nome "Severino" meio que virou adjetivo, que significa: nordestino sofredor, "pau para toda obra ou circunstâncias", ou até "Paraíba", como diz os cariocas.

Beijoca e boa noite!

Milaresendes disse...

Oi gurias,
eu AMO essa estória!
Se pudesse, tentaria que as pessoas lessem ao menos um trecho dela...
Obrigado pela contribuição!
Bjkas
Mila